O Serviço Nacional de Saúde poderia certamente funcionar melhor em várias ocasiões, mas daí procurar dar-lhe a extrema-unção ou começar a preencher a certidão de óbito vai um grande passo… Despropositado. A opinião é de Pedro Pita Barros, que em entrevista ao nosso jornal fala da sustentabilidade de um sistema demasiadas vezes empurrado para a ribalta das notícias por falta de capacidade de quem o administra de antecipar situações de crise, preparando planos de contingência para as enfrentar.
JORNAL MÉDICO | Ainda que recorrente, a questão da sustentabilidade do actual modelo de Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é consensual. Há quem defenda que sim; que é sustentável… Quem garanta que não. Existe evidência que permita concluir num ou noutro sentido?
PEDRO PITA BARROS | A definição do que é sustentável não é clara. A maior parte das vezes está-se a pensar em financeiramente sustentável, e nesse caso a pergunta é na verdade sobre se o Governo consegue atribuir suficientes fundos ao Serviço Nacional de Saúde. Essa capacidade depende de vontade política, por um lado, e das utilizações alternativas dos fundos públicos, por outro lado. Fechar o Ministério da Educação ou cortar nas pensões pagas libertariam fundos suficientes para perto de duplicar o orçamento do Serviço Nacional de Saúde. Mas essa não é verdadeiramente uma opção. Assim, a sustentabilidade financeira do SNS tem que ser vista como a capacidade dos fundos necessários ao SNS serem compatíveis com o equilíbrio das contas públicas, dadas receitas públicas e as outras despesas públicas. Dentro deste enquadramento, é desejável que o financiamento do SNS seja compatível com os objetivos assistenciais do SNS, e que para o orçamento atribuído ao SNS as verbas sejam utilizadas com o melhor resultado possível.
JM | O aumento da comparticipação privada para a despesa com a saúde como forma de suprir as necessidades de financiamento futuras seria uma opção viável para manter o actual “standard” de prestação?
PPB | De certa forma, a participação privada é sempre 100%, a questão é saber se é feita antes da necessidade de cuidados de saúde e com redistribuição dentro da população (de pessoas com maiores rendimentos para pessoas com menores rendimentos, de saudáveis – que não necessitam de cuidados de saúde – para pessoas menos saudáveis – que precisam de recorrer a cuidados de saúde). Aumentar a comparticipação privada no momento de necessidade não deve ser vista como uma forma de financiamento, pois para ter efeito tem que ser grande, e se for grande destrói, pelo menos parcialmente, o valor da protecção financeira que o sistema de saúde deve dar.
JM | “O SNS está doente, mesmo moribundo” ouve-se amiúde. Está mesmo, mas tem cura, ou é caso perdido?
PPB | A expressão é manifestamente exagerada. Nos milhões de consultas realizadas todos os anos e nos milhares de internamentos, nos muitos episódios de urgência atendidos, na vacinação da população que todos os anos se realiza, temos evidência que o SNS funciona. Poderia certamente funcionar melhor em várias ocasiões, mas daí procurar dar-lhe a extrema-unção ou começar a preencher a certidão de óbito vai um grande passo, e despropositado.
JM | Existem outras opções de modelo de financiamento que permitam manter o SNS dentro nos limites do modelo “beveridgiano” de protecção social?
PPB | Existem sempre opções no sentido de pagamento antecipado através de um sistema público de proteção que depois tem prestação directa de cuidados de saúde. Actualmente é sobretudo financiado a partir de impostos gerais. A existência de um imposto próprio ligado ao rendimento seria uma opção possível (embora não lhe veja grande vantagem face à situação actual), bem como a introdução de parte de financiamento via impostos consignados. Para manter um Serviço Nacional de Saúde com forte prestação própria, o financiamento pago antecipadamente tem que surgir naturalmente via sistema de impostos.
JM | Há evidência que permita afirmar que a execução orçamental na Saúde segue o rumo traçado e até melhorou… Ou persistem dúvidas de que se mantêm os costumeiros desvios… Camuflados com, chamemos-lhes assim, “artifícios contabilísticos”?
PPB | Não há necessariamente uma questão de artifícios contabilísticos. Mas a informação sobre a execução orçamental melhorou nos últimos anos, sobretudo com a parte que é publicada mensalmente pela Direcção-Geral do Orçamento.
JM | Como justificaria a publicação da portaria n.º 82/2014 de 10 de Abril? Foi uma tentativa de passar “por entre as gotas da chuva” uma reforma estrutural, ou teve outro objectivo?
PPB | A classificação de hospitais não é propriamente uma reforma estrutural. No caso desta portaria implicaria uma arrumação administrativa dos hospitais, com efeitos na definição da sua actividade. Não me parece que tivesse outro objectivo que o fazer essa arrumação. A resistência essencial é que todos acham que se deve reduzir e alterar nos outros hospitais mas não no seu (em geral).
JM | Existe a percepção – pelo menos nos relatórios internacionais – de que a reorganização da rede hospitalar é uma das medidas cuja implementação está a ser bem-sucedida. Existe evidência de que está mesmo a acontecer, ainda que devagarinho… Dir-se-ia mesmo “à socapa”?
PPB | A reorganização da rede hospitalar não pode ser apenas uma medida ou uma portaria (ou mesmo uma lei). É importante que sejam criados mecanismos de adaptação permanente da rede hospitalar à evolução das necessidades da população. E esses processos são mais do que peças legislativas, são formas de trabalhar diferentes. Apesar do que tem sido feito, há ainda um trabalho considerável a realizar.
JM | Este Inverno o país assistiu a uma alegada situação de caos nas urgências. Um dos focos principais das notícias foi a escassez do número de camas. Ora, aceitando o princípio de que “cama disponível é cama ocupada”, a simples redução do número de camas verificado é suficiente para explicar o fenómeno?
PPB | O chamado “caos das urgências” tem, quanto a mim, muito de problemas de gestão e previsão, e de capacidade de ajustamento a situações extremas. A actividade dos hospitais é cada vez menos definida pelo número de camas (basta pensar no aumento das intervenções em ambulatório, de maior conforto e até segurança para os doentes). Se há menos internamentos e mais actividade de ambulatório, deixa de ser necessário em condições normais ter tantas camas num hospital, o que o torna mais sensível a picos de procura que impliquem a utilização dessas camas. Mais do que comprar camas que fiquem à espera de serem utilizadas até ao próximo pico de procura, ou que fiquem a ser utilizadas sem necessidade, é preciso que os hospitais tenham a capacidade de antecipar e de ter planos de contingência para picos de procura.
JM | Outra das razões apontadas foi a falta de resposta dos CSP. No entanto, se atendermos ao Balanço Social do Ministério da Saúde, verificamos, por um lado, que 78% dos recursos humanos estão concentrados nos hospitais e por outro, que os 22% de recursos humanos dos CSP realizam mais do dobro das consultas do que as prestadas nos cuidados secundários. Como se explica esta aparente contradição?
PPB | Os recursos humanos nos cuidados hospitalares fazem mais do que apenas consultas, enquanto nos cuidados de saúde primários fazem sobretudo consultas. Por exemplo, é normal pensar-se na actividade dos hospitais como tendo três a quatro grandes áreas: urgências, consultas externas, internamentos e hospital de dia/actividade em ambulatório. Os recursos humanos espalham-se por estas diferentes actividades. Não faz muito sentido uma comparação directa do número de consultas entre níveis de cuidados.
JM | A reforma dos CSP traduz-se, hoje, numa divisão da população em dois grupos com dimensão aproximada: os que são atendidos em USF e aqueles que o são nos centros de saúde tradicionais, hoje rebaptizados de UCSP… Que impactos destacaria nesta “divisão”?
PPB | Neste momento, a necessidade de saber se essa divisão corresponde de alguma forma a preferências da população quanto ao modelo de cuidados de saúde, ou se corresponde às preferências dos profissionais de saúde, ou se é resultado de decisões administrativas incompletas ou resultantes de inércia. Não há nada à partida que determine que os cidadãos preferem sempre inequivocamente um modelo face a outro, embora o modelo USF pela sua flexibilidade e eventual maior proximidade à população reúna as condições para ser preferido pelos profissionais de saúde e pelos cidadãos.
JM | O modelo USF induz aumento da oferta – cumprimento de indicadores – que chega mesmo a ser agressiva, com os utentes a serem convocados – quase intimados – para atendimento específico… Tendo em conta o estado de “saúde” das contas do SNS, não será de alguma forma contraproducente?
PPB | Se os indicadores estiverem bem definidos, é na verdade o contrário. Ao detectar precocemente problemas, essa intimação, como lhe chamou, pode evitar custos futuros aos cidadãos e ao Serviço Nacional de Saúde. Claro que a chave está em serem “bem definidos”, o que nem sempre é fácil, e simplesmente pagar para fazer algo sem efeito cria problemas às contas do SNS. Mas em geral a ideia que tenho de várias informações que têm sido disponibilizadas é que o modelo das USF com indicadores de desempenho se traduz em bons resultados, incluindo financeiros (apesar de faltar um estudo sistemático e profundo que seja conclusivo além de qualquer dúvida).
JM | Ao acréscimo da oferta, associa-se um aumento dos custos com pessoal, que nas USF de modelo B levam a que no limite – que é a situação mais frequente – pelas contas do Tribunal de Contas um médico ganhe mais do que o Presidente da República. Se o modelo é custo-efectivo… Em princípio deveria ser alargado a todo o universo. Seria custo-suportável?
PPB | A questão é saber se devemos olhar categoria de despesa a categoria de despesa, ou no total. Se os médicos gerarem poupanças na utilização de outros recursos, podem ganhar mais e ainda assim levarem a menor despesa global no sistema de saúde.
JM | Segundo o Ministro da Saúde, há cerca de um milhão de portugueses sem médico de família atribuído. Como se explica este cenário tendo em conta que existem médicos de família em número mais do que suficiente para cobrir toda a população?
PPB | Há, como é reconhecido, também um problema de distribuição de médicos pelo espaço geográfico. Há médicos com diversas funções. E não há uma distribuição uniforme da população pelo território. Por exemplo, hipoteticamente, se numa localidade perto de Bragança existirem mil pessoas, e numa outra localidade perto de Vila Real de Santo António existirem duas mil pessoas, dois médicos permitem atingir o dito rácio de 1.500 utentes, mas uma das localidades terá 500 utentes sem médico de família, pois o médico que servir a primeira localidade não tem possibilidade física para o fazer na segunda. Juntando estas explicações, surgirão zonas em que há cidadãos sem médico de família.
JM | “Os médicos do SNS estão a emigrar e a fugir para o privado”, ouve-se com frequência… No entanto, se atendermos aos dados do INE (ver destaque do Dia Mundial da Saúde), a verdade é que o saldo líquido no SNS de 2002 a 2013 é positivo (+1.822) e nos hospitais privados… Negativo (-972). Como se explica a aparente contradição?
PPB | É mais fácil dar publicidade aos casos de transição do sector público para o sector privado, normalmente de profissionais com alguma senioridade, do que ao recrutamento de jovens profissionais para o SNS. Dá-se mais relevância a uma saída de um chefe de serviço do que à entrada de dois jovens médicos nesse mesmo serviço. As percepções nem sempre correspondem à realidade.
JM | Custo da inovação. Como decidir… O que aconselharia?
PPB | Em parte, o caminho que está a ser seguido, de avaliação do valor terapêutico que essa inovação acarreta. Em segundo lugar, o repensar do modelo de remuneração dessa inovação, numa perspectiva ampla. Tem-se criado uma visão de que a inovação deve ser paga pelo valor que gera. O que sendo apelativo como princípio não é necessariamente correcto quando leva a que o valor da inovação seja definido pelo custo do que vem substituir, ou pelo valor máximo que haveria disponibilidade para pagar. Num sistema económico a funcionar bem, os preços deveriam corresponder aos custos de produção e não ao máximo valor que é gerado por essa inovação. O pagar a inovação significa que deve ser dado ao inovador o valor suficiente para pagar o esforço de inovação (e não todo o valor gerado pela inovação). Como as inovações surgem internacionalmente, mais cedo ou mais tarde terá que haver um esforço concertado para repensar o modelo de remuneração da inovação.
JM | No nosso modelo de protecção social, o mercado do medicamento – como também o MADT – é no mínimo sui generis… Quem paga não prescreve nem toma; quem prescreve, não paga nem toma e quem toma, não prescreve nem paga. Tendo em conta as projecções associadas ao índice de envelhecimento… Não seria razoável introduzir um factor de equilíbrio nesta equação? Por exemplo…
PPB | Não é um problema de factor de equilíbrio. É um problema de reconhecer as distorções de decisão que resultam desse triângulo e procurar introduzir os mecanismos que as mitiguem. A avaliação de tecnologias é um desses mecanismos. Um maior envolvimento dos doentes no próprio processo de decisão é outro, bem como mecanismos que levem quem prescreve/decide tenha em atenção custos e benefícios das decisões que toma.
Por favor faça login ou registe-se para aceder a este conteúdo
Qual é a relação entre medicina e arte? Serão universos totalmente distintos? Poderá uma obra de arte ter um efeito “terapêutico”?